A origem do Livro-poema
Moacy Cirne & Alvaro de Sá [0000]
A velocidade de transformação da arte nos últimos tempos tem sido tão grande que, atas vezes, o consumidor recebe as informações de maneira superposta, confundindo-se os diversos conceitos que as alimentam formalmente. A crítica, a quem caberia uma ação didática de esclarecimento, sofre também o mesmo impacto.
As tentativas de inauguração de poemas e a reformulação
1 por que passou a poesia mundial na primeira metade da década dos 50, trouxeram uma série de contribuições consubstanciadas na poesia concreta brasileira. A falta de repertório da crítica da época fez com que este movimento passasse à história da literatura através do que escreveram alguns de seus fundadores
2. Como os que mais publicaram teoria foram os componentes do Grupo Noigandres
3, o consumidor tornou a teoria deste grupo como sendo a teoria oficial do movimento. Para isto eles também concorreram, pois nunca procuraram diferenciar a sua atuação daquela de todo o movimento.
De uma perspectiva informacional mais completa, torna-se nítido que o movimento concreto respondeu a um estágio do desenvolvimento da sociedade brasileira, constituindo-se de uma frente ampla poética, aglutinadora de três vertentes totalmente distintas:
1. A fenomenológica
4, cujo principal representante foi Ferreira Gullar, e que desembocaria no neoconcretismo.
2. A de rigor estrutural
5, compreendendo os integrantes do Grupo Noigandres – atuando dentro do concretismo – e seus continuadores. Este rigor, que o tipo
futura documenta, levou à repetição e ao fechamento, trazendo mais tarde, como segunda reação, a poesia praxis
6.
3. A espacional, apresentada por Wlademir Dias Pino, precursora do poema/processo e dividida em dois livros/caminhos:
A Ave: o ordinal – linha de continuidade / a sucessão ordenada / origem do unitário /
Numéricos.
Solida: o cardinal – geometria / coleções estrutura(s) / empilhamento (opacidade) / superposição /
Elementos.
Assim, podemos dizer que a preocupação da corrente fenomenológica era a expressão; a da Noigandres, a construção; e a de Wlademir Dias Pino, a função. Esta é a base com que as três vertentes atacaram o problema do livro, sendo pela primeira vez no Brasil considerado como uma parte inseparável do trabalho intelectual, e que é, em última instância, a diferença existente ente a poesia-livro, o poema-livro e o livro-poema.
A poesia-livro é a incorporação do livro, como elemento de expressão às palavras quem compõem o poema. "Nesta experiência, poema e livro mantêm entre si uma relação meramente circunstancial, mas que estão de tal modo integrados que é impossível distingui-los: poema e livro nascem num só e mesmo ato, uma vez que o impulso que determina as palavras e sua posição na página determina também o formato da página e os cortes. O uso preferencial que fazemos do verso da página é determinado pela necessidade de apresentar palavras sucessivamente, mas também acumulando-as no presente: um presente feito de camadas de "tempo". Essa participação tão íntima da página material na expressão poderia induzir o leitor a pensar que nossa intenção é transformar o poema em algo material, intranscendente, em objeto. Na verdade, segundo cremos, a palavra, com seu peso, obriga a página a vencer o limite tátil, submerge-a na dimensão temporal da linguagem. A página é pausa, duração, silêncio. Um silêncio verbal. Cortando-a, justapondo-a, procuro tornar audível o lado mudo da linguagem, o seu avesso" (Ferreira Gullar,
Suplemento Dominical do JB, 22/3/1955)
7.
No poema-livro, o livro é subordinado à estrutura do poema e isto se prende à conceituação que se faz do espaço gráfico: "O espaço a que nos referimos é o espaço de organização do poema. O campo gráfico, aquilo que Mallarmé chama de o
branco da página" (Haroldo de Campos,
Suplemento Dominical do JB, 27/10/1957,
Teoria da Poesia Concreta, p. 98). O fato do poema ter o livro como suporte é secundário, conforme pode-se ver pela falta de referências ao problema em toda a
Teoria da Poesia Concreta. Acresce ainda que é conhecida a posição dos poetas do Grupo Noigandres de afirmação de que o livro estaria no seu fim, segundo o pensamento de McLuhan. Subordinando-se à estrutura, os poetas Noigandres cogitam de diferentes veículos para seus poemas: "Augusto de Campos, em
Noigandres 2, já considerava a possibilidade de utilizar luminosos ou filmletras para os poemas em cores do poetamenos, tendo chegado a escrever, nesse sentido, uma carta a Abrão Palatnik..." (
Teoria da Poesia Concreta, p. 102). O exemplo mais clássico de um poema-livro é LIFE, de Décio Pignatari, cuja estrutura é a exploração das formas comuns às quatro letras: este poema já recebeu uma redução gráfica, sendo publicado em uma só página e, por isso que os poemas concretos do grupo Noigandres - mais do que as outras experiências de vanguarda - puderam ser apresentados em cartazes.
O livro-poema tem o seu primeiro exemplo conhecido n'AVE, de Wlademir Dias-Pino, elaborado a partir de 1954 e lançado em abril de 1956. O que caracteriza o livro-poema é a fisicalidade do papel como parte integrante do poema, apresentando-se como um corpo físico, de tal maneira que o poema só existe porque existe o objeto (livro). A intenção do livro-poema não é a produção de um objeto acabado, mas, através de sua lógica interna, formar o poema durante o uso do livro, que funciona como um canal que, no seu manuseio,
limpa a leitura fornecendo a informação, possibilitando assim um novo explorar em nível já de escrita, sobre o livro
limpo: recuperação criativa dos dados informativos (versão).
A função do livro é ser gerador de informações através de seu processo. Enquanto numa poesia fenomenológica ou em um poema "estrutural" a leitura esgota a comunicação do poeta com o consumidor, no livro-poema a comunicação primeira inicia um novo universo para o consumidor, levando-o a posição de criador e distinguindo radicalmente a
leitura da
escrita, ou seja, o ato mental de captar a intencionalidade do poeta, do ato físico exploratório do consumidor.
O livro-poema não pode perder a característica de livro para ser filme ou cartaz. As propriedades físicas do material impedem esta transposição. O livro-poema exige a exploração simultânea ou isolada de:
transparência / opacidadeperfuração / relevovinco / dobrasbrilho / corcorte / desdobragemelasticidade / flexibilidadetextura / durezae, como organização de livro, de:capa / contracapaníveis / cantosnumeração / inter-relação material das folhasposicionamento formal / ajuste De maneira análoga à exposta acima, podemos falar de poesia-objeto, de poema-objeto e de objeto-poema, ou melhor ainda: de não-objeto simbólico (cf. Ferreira Gullar,
Teoria do Não-Objeto), de arte-objeto e objeto-arte
8. Neste nível de análise verificamos ser
Un Coup de Dés, de Mallarmé, uma poesia-livro
9. Por outro lado, é preciso dizer que, se o "livro-poema não puder perder a característica de livro para ser filme ou cartaz", pode, contudo, permitir versões materiais.
Notas sem Referências
1. "O movimento de poesia concreta alterou profundamente o contexto da poesia brasileira. Pôs idéias e autores em circulação. Procedeu a revisões do nosso passado literário. Colocou problemas e propôs opções. No plano inicial, retomou o diálogo"
diálogo com 22, interrompido por uma contra-reforma convencionante e floral" (apresentação da
Teoria da Poesia Concreta, Ed. Invenção, São Paulo, 1956, p.5).
2. Os poetas modernos expressavam seu pensamento teórico - e assim construíam a história da literatura - nos prefácios dos livros que publicavam. Na poesia concreta, houve uma necessidade maior de colocar o pensamento teórico fora do livro de criação. No poema/processo o pensamento teórico está ligado ao comportamento político: a rasgação do Municipal, a passeata de Pirapora, etc.
3. Aos publicarem os textos críticos e manifestos (1950-60) do Grupo Noigandres titularam
Teoria da Poesia Concreta, criando a necessidade de dois apêndices (um contendo a bibliografia do Grupo Noigandres; o outro, a sinopse de todo o movimento da poesia concreta). O chamado plano-piloto da poesia concreta só foi assinado pela metade de seus fundadores.
4. "A origem da poesia é não se ter que dizer. Mais precisamente: é se negar a dizer o possível. Porque ao menor descuido a linguagem acode, solícita para que falemos. Para que falhemos. O que é para a linguagem falar, é para a poesia falhar. Assim é preciso que a linguagem falhe, para que a poesia fale" (Ferreira Gullar, in AD -
Arquitetura e Decoração, nov./dez., 1956, n.º 20.
Catálogo da Exposição Nacional de Arte Concreta). Embora o Grupo Noigandres afirme ter havido uma cisão no concretismo em junho de 1957, todos os participantes do movimento aceitaram dar depoimento pessoal e chamar sua poesia de concreta no Suplemento Dominical do JB, dedicado ao primeiro aniversário de seu lançamento (dez. 1957). Na verdade, o rompimento efetivo de Gullar, e não cisão, deu0se em 1959 com a fundação do neoconcretismo.
5. "A solução do problema da estrutura é que requererá, então, as palavras a serem usadas, controladas pelo número temático. A definição da estrutura que redundará no poema será o momento exato da opção criativa ... Será a estrutura escolhida que determinará rigorosa, quase matematicamente, os elementos do jogo e sua posição relativa" (Haroldo de Campos, Da Fenomenologia da Composição à Matemática da Composição. In
Teoria da Poesia Concreta, p. 91). A poesia é estrutural num sentido morfológico-formal, próprio dos formalistas russos.
6. A poesia práxis liga-se ao neoconcretismo, por terem ambos o caráter de reação. Esta ligação é também formal: figuração como ato de reagir à forma geométrica e ao rigor estrutural.
"Onde começa a poesia lavra só o silêncio das palavras sós. Palavra-palavra, larva de palavra. Silêncio da larva. De larva. De ovo. Só a palavra só lavra só larva só"
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Ouço o ovo. Ouço o osso. Osso, ouço. Ovo e osso. Osso e ovo. Osso e ovo.
Ovo, ovo o ovo. Lava e osso. Aço e osso. Lavra e osso.
Lavra e ouço. Lavra e lava...
... A lavra. A larva. A palavra:
(p/ex)
VASO
(Ferreira Gullar, Teoria e Prática da Poesia, In AD –
Arquitetura e Decoração, número citado).
7. É interessante observar que mesmo um Ferreira Gullar confundia a poesia-livro e o poema-livro com livro-poema: “Chamo de livro-poema (ou poema-livro) à tentativa de usar a página (o livro) como um elemento interior ao poema” (artigo mencionado,
Suplemento Dominical do JB, 22/03/1959).
8. Seria mais apropriado falar-se de máquina-arte ou instrumento-arte.
9. A incompreensão desta realidade do livro de Mallarmé pelo Grupo Noigandres, fez com que Décio Pignatari o colocasse entre os “pontos cardeais para a realização de uma poesia concreta” (
Suplemento Dominical do JB, 19/01/1957. In Teoria da Poesia Concreta, p. 57). Não houve a percepção de que o espaço branco de Mallarmé era simbolista, reforçando a compreensão de Ferreira Gullar e de suas posições.
(Transcrição parcial e alterada de artigo de autoria conjunta de Moacy Cirne e Álvaro de Sá, publicado em Revista Vozes, Petrópolis, Vozes, 65 (3): 39-44, abril 1971).
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