Posfácio: a Marca e o Logotipo Brasileiros
Antonio Houaiss [1974]
O título deste livro – e a palavra `livro`, no caso, já não é bem a que melhor o denota – é, de um lado, absolutamente fiel a um dos seus muitos objetivos.: A marca e o logotipo brasileiros. Qualquer industrial, artesão, criador de coisas, comerciante, banqueiro, financista, barganhador, intermediador, (de bens, benesses, serviços, relações) que se defrontar com a necessidade de ter a sua marca ou o seu logotipo, nele encontrará um repertório de informações tão rico e aliciante que, sem dúvida, sairá, depois de manuseá-lo e apreende-lo, enriquecido de idéias para criar ou fazer criar ou escolher a sua marca ou o seu logotipo. Assim, o objetivo primeiro está aqui cabalmente cumprido.
Mas marca e logotipo têm história, forma, função, estrutura, inseridas na cultura. E o lado visual da cultura, se não é sensorialmente o predominante, é por certo dos mais relevantes, se bem que os sentidos continuem e continuarão a ser campo aberto ao conhecimento humano, como elos situacionais do vivente para consigo mesmo, do vivente para com o vivente, do vivente para com o não-vivente e, por extensão, de ser para com ser.
Percamos uns minutos com relação às duas palavras-chaves deste livro.
A base morfológica correspondente ao português marca ocorre em quase todas as línguas germânicas; e, através de teutônico, deve ter sido cedo introduzida no românico, aparecendo, tanto em forma feminina quanto em masculina, como em ambas (como é o caso do português marca e marco, ademais de marcha, e sem contar seus cognatos), no francês, no provençal, no italiano, no espanhol, com sentidos que se irradiam entre `sinal, signo, sinete, limite, moeda (porque ´marcada´), padrão, módulo, modelo, traço, caráter´ e afins. Em português há documentação escrita, tardia embora, já a partir de 1179 e daí por diante com ocorrências nos diversos sentidos referidos. Mas o ligado mais diretamente à problemática deste livro, vale dizer, a ´marca comercial´, não deve ser anterior ao século XVI, como se pode inferir da palavra inglesa correspondente, trade mark, cuja acepção se faz clara já por 1571, embora a forma fixa de composto só se documente por 1838.
De outro lado, a palavra logotipo é de formação moderna, calcada sobre elementos gregos (lógos, ´palavra´, e týpos, impressão, marca´) e tem sua origem inequivocamente estabelecida: foi forjada em 1816 , em inglês, pelo conde Stanhope, citado da Typographia, de 1825, no Hansard´s Parliamentary Debates, nos seguintes termos, por tradução: “Estimei oportuno forjar um novo par de caixotins compostos... introduzindo um conjunto novo de letras duplas, que denominei logotipos”. Daí – dada a internacionalidade e motivação óbvia em línguas de cultura – a palavra passou para outras, sempre, de início, como termo de tipografia no sentido de `tipo com uma palavra, ou duas ou mais letras, fundidas numa peça única´. Talvez a primeira dicionarização das palavras em português seja a da chamada 10ª edição (1954) do dicionário originalmente de nosso compatrício Antônio de Morais Silva (cuja grande edição é de 1813), em que ocorre sob a forma logotipo – pó requinte filológico postulado pela quantidade breve do y grego original,como nos casos de protótipo, genótipo, fenótipo, biótipo etc. mas em tipografia, na linha consagrada para com monotipo e linotipo, para que não há como contestar o paroxítono de logotipo. O que há é consignar o fato de que, do sentido original, a palavra logotipo tem hoje em dia, pelo menos no Brasil, uma aura semântica que se aproxima da de ´marca comercial´, ´marca de fábrica´, ou, mais ainda, de ´marca, sinal, símbolo, emblema, insígnia empresarial´ e afins.
Estão, assim, perdidos os minutos solicitados para as palavras em causa, que poderiam ser horas ou dias. Fui, quanto pude, breve. E prossigamos.
Ora, se de um lado este livro, como dissemos, é absolutamente fiel a um dos seus objetivos, com ser, como é, catálogo racional e temático de marcas e logotipos brasileiros capaz de ministrar aos usuários um repertório riquíssimo de espécimes dessa natureza, vai ele, de outro lado, muito além disso, pois constitui sem favor uma preciosa iniciação à faculdade e arte de ver.
Houve e há uma tradição que crê os sentidos e os instintos – e entre eles os limites continuam operação de dificílima definição, em todos os ramos das biociências – como manifestações de vida biologicamente transmitidas, cujas potencialidades se atualizam no curso da aventura própria de cada vida. É muito provável que haja aí um lastro de verdade.  Mas é mais provável que haja aí apenas mais um lastro de verdade, mas não a verdade. O homem, como ser sócio-histórico-cultural, faz-se a si mesmo. E faz-se a si mesmo porque, dentre muitos outros fazeres, faz cada vez mais humano o ouvir, o ver, o degustar, o olfatar, o tatear, o termar, o etcetrar – correndo o risco, assim, de também casa vez mais desfazer o humano que já tenha conquistado. Assim, o homem tem fatalmente de aprender tudo, desde o primeiro até o último momento do seu viver, aprender inclusive o morrer. E não há saber que se possa erguer e apreender sem confrontação, debate, dúvida, divergência, polêmica, ensaio, erro, obstinação, prova, contraprova, prática.
Ora, este livro ´organiza´ o material, que se propôs documentar, segundo vários pontos de vista. De um lado, postula um tipo de ´leitura´- quero sobretudo dizer ´visura´ou ´vistura´- em que haja uma operação contrapontística: se as páginas pares são, em certas áreas, preferencialmente documentos visuais presentes, modernos, as páginas ímpares são preferencialmente documentos pretéritos , modernizados ou atualizados pelo contraponto. As raízes brotam e emergem na floração de hoje. Mas pedem mais estas páginas: pedem que o ´leitor´- ou ´visor´ ou ´vistor´ou ´vedor´ - acompanhe os aprofundamentos que se propõem sucessivamente, desde, por exemplo, uma página com uma quadrícula central apenas, até as seguintes, em que o tema quadricular – como num esquema de transformação do Bauhaus – se amplifica, se transfigura, se enriquece,s e despoja, se barroquiza.
Creio dever aqui também ressaltar outra dentre as muitas sabedorias consumadas neste livro. A tecnologia gráfica e tipográfica – se posta em evidência nos seus mais requintados recursos – poderia ter feito dele uma obra de arte gráfica luxuosa, suntuária, até mesmo pidatória: seria `belo´, mas seria irreal para o nosso meio, transformando-o em coisa de bibliófilo, o que não é defeito, mas é, até muitos pontos, coisa para os ´eleitos´ da tribo. A sabedoria a que me refiro constituiu em fazê-lo realmente funcional e belo, mas com uma exemplar economia de meios, com recorre a técnicas gráficas menos onerosas e nem por isso menos eficazes: consciência social.
O livro, assim, diagramado em ativa operação mental – e aqui o visual é, efetivamente, à Leonardo da Vinci, cosa mentale – , se torna um permanente desafio ao usuário, propondo-lhe associações, oposições, conexões, correlações, dissociações, simplificações, atomizações, conglomerações, análises, sínteses, expansões, contrações, dispersões, compactações, com problemas que transcendem o teorético da gestalt, do behavior, do abissal. É uma obra aberta, no melhor sentido didático, o de aprender sempre, de educar-se sempre, dentro ou sobretudo fora dos centros institucionalizados de instrução – as escolas, quaisquer que sejam os seus nomes: creche, maternal, pré-primário, primário, ginasial, colegial, técnica, ateneu, vestibular, academia, superior, faculdade, universidade, colégio e os demais -, como na visão antecipatória de Ivan Illich.
Os textos que acompanham o material visual fervilham de proposições e insinuações, mas não se prendem rigidamente a um sistema de idéias ou de teorias fechado: são eles também, na sua concisão lapidar, convites à mentação, à pensação, à indagação, à pesquisa, à discussão individual (de si para si) ou colegiada (de vários para vários), permitindo hipóteses de trabalho das mais diversas e fecundas. Os campos da comunicação e da expressão, teórica e praticamente, se problematizam assim, compelindo a um pensar e um fazer experimentais de que velhos erros e novas luzes brotarão.
O poderoso escritor que é João Felício dos Santos, com ter sue nome associado à co-autoria deste livro, de ter-se sentido rejuvenescer dentro de um novo universo, já que o seu era o de um veterano campeão de outro, o verbal. E Wlademir Dias-Pino, na sua seriedade de um dos mais perspicazes pesquisadores do visual no Brasil, deve sentir-se feliz com essa realização, que encontrou nos editores e gráficos Antonio da Costa Martins e Aparício Miranda, a benemérita compreensão de que aqui se aperfeiçoou algo muito mais do que um catálogo de marcas e logotipos. Esse algo, este livro, deverá ser um vademécum para quantos estudantes haja no Brasil onde se estudarem, pra valer, os problemas da comunicação e expressão visuais. Oxalá esse meu voto se confirma, para que venhamos a ter a enciclopédia do visual que Wlademir Dias-Pino sonha – e pode – realizar.

Antonio Houaiss
Rio de Janeiro, 10 de julho de 1974

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