A enciclopédia branca de Wlademir Dias-Pino
Rogerio Camara [2008]
Da Apresentação
 “Pouco se sabe e pouco se fala de Wlademir Dias-Pino, o mais arredio, o mais estranho dos autores que a poesia concreta revelou, já em sua 1ª exposição coletiva, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956.”1
 
Do arquivo
O poeta Wlademir Dias-Pino dedica-se já há alguns anos ao seu mais ambicioso projeto que envolve a organização de uma Enciclopédia Visual com 1001 volumes. Em sua casa, antigo sobrado de vila no bairro do Catete no Rio de Janeiro, reservou um quarto para armazenar o material que servirá a execução do projeto: recortes de inúmeras imagens em traço (p&b) criteriosamente catalogadas e inseridas em 1001 caixas brancas.
    Tive a oportunidade de visitar o seu arquivo em duas ocasiões, uma em 1999 e outra em 2007. Entre um momento e outro a concepção do arquivo foi bastante alterada e o próprio espaço físico foi reestruturado devido a uma reforma na casa. Registrei em fotografias somente a segunda visita, mas descrevo, neste tópico, a imagem do arquivo restou em minha memória da primeira visita.
    As paredes do quarto eram totalmente ocupadas por prateleiras que circundavam e dominavam a sala em movimento linear. Nelas as caixas estavam regularmente alinhadas, sem variáveis de cor ou tamanho e, organizadas seqüencialmente do número 1 ao 1001. Não havia nada além disto no cômodo, nem móveis, nem qualquer tipo de elemento avulso, somente a estante com as mil e uma caixas brancas. Para distribuir e agrupar as imagens Dias-Pino afirmou ter criado um sistema próprio de classificação que o torna capaz de acessar e acolher qualquer imagem. Em típica operação classificatória ele procurou idealizar um sistema que tornasse possível abarcar todas as imagens existentes e, em perspectiva, todas as que viriam existir. Aparentemente, no entanto, sua biblioteca não apresentava outro sinal de orientação alem da seqüência fria dos números grafados a mão com caneta hidrocor azul. Não havia nem mesmo, a título de auxílio para identificação dos conteúdos, imagens pregadas no exterior dos volumes que tipificassem as outras que se encontravam imobilizadas pela clausura. Tudo parecia reduzir-se à ordenação numérica. Não era possível detectar um princípio claro de classificação, algo que indicasse uma organização por classes, hierarquizações, subordinações etc. Questões: Que imagens a caixa de número 657 continham? Por quê estariam inseridas especificamente nesta caixa e com este número? 
    Na sala, seu local de trabalho, encontravam-se folhas com reproduções de imagens, cola e tesoura, materiais básicos para as composições das páginas de sua enciclopédia, estas trabalhadas manualmente. Em nenhum dos dois cômodos se viam livros. O poeta chegou mencionar, em nossa conversa, algum livro que gostaria de mostrar, mas se desculpou dizendo que seus livros estariam guardados em algum canto da casa e que poderia mostrá-los em momento oportuno. Momento que não ocorreu. Ficou a suspeita de que todos os seus livros estariam picotados nas caixas de seus arquivos. Hipótese fantasiosa é verdade, mas que, de algum modo, diz respeito a toda operação de construção do acervo. Impressos populares como gibis, folhetos, publicidades, revistas, cartões, etc. serviram como base. Não ficaram de fora, porém, livros que, quando não se contava com as fotocopiadoras, eram recortados sem culpa. As imagens encontram-se, em sua maioria, sem nenhuma referência (uma legenda ou etiqueta que a tipifique). Em muitos dos casos, isto se deve à própria origem das imagens, estas extraídas de impressos populares que normalmente reciclam informações e usufruem do que já  foi tipificado no imaginário popular. Mas também resulta da operação de Dias-Pino de desconexão da imagem de todo seu antecedente, de todos seus vínculos históricos, de seu contexto de origem e de sua função. As imagens isoladas de sua referências de origem, restam, em sua clausura, sem nome, sem passado no aguardo da execução de um novo contexto que lhe dê sentido. O poeta deste modo fica livre para recombiná-las e recriá-las em sua própria versão e, a partir daí, fazer circular novos conceitos que nasçam das fricções entre as imagens.

Da enciclopédia

Falou-se até agora do arquivo. A enciclopédia visual não existe, ou existe pelas possibilidades do arquivo. Branco é o arquivo com suas lombadas destituídas de caráter orgânico, sem a luminescência multicolor das encadernações de uma biblioteca comum. Branco é a cor do enigma, cor sem profundidade, que não se atravessa segundo Wittgenstein. O arquivo tal como se apresenta é uma sepultura. É preciso acessar as imagens, solicitá-las para que elas ganhem vida. Procurar, selecionar, justapor, combinar, compor, ver as alternâncias entre o preto e o branco que matizam os cinzentos. Nestas ações dissipa-se a opacidade do branco, transpõe-se a imagem pelas luminescências e pelas crominâncias. As cores vibram entre o preto e o branco, são sombras ou deficiências da luz ensina Goethe. Delas surgem as perspectivas. Por isso não caberia na lombada das caixas uma imagem que tipificasse as imagens internas. Caso houvesse todo o arquivo seria transformado numa mera coleção de figurinhas.
    Mas o que entendemos por enciclopédia? O texto enciclopédico tem a pretensão de ser, via de regra, simultaneamente legível e de referência. Primeiro, o conceito de legibilidade, de leitura contínua e fluida, implica no ordenamento do discurso com sentido, clareza, medida e proporção de modo a torná-lo compreensível a um amplo espectro de leitores. O texto deve encontrar a exatidão dos termos com concisão e, ao mesmo tempo, ser completo. Segundo, a enciclopédia trata da justaposição de elementos parciais que ao mesmo tempo em que postula uma homogeneidade, deve conquistar uma organicidade, hoje orientada pela ordem alfabética. Foi a Enciclopédia de D’Alembert e Diderot que introduziu, como novidade, o uso do alfabeto como elemento de ordem. Elemento neutro e arbitrário e por isso eficiente dispositivo de localização das informações por sua universalidade, sua ordem é ensinada no primeiro momento de alfabetização e é idêntica em todas as línguas que do alfabeto se utilizam. Ela deve facilitar a consulta e tornar disponível qualquer dado a partir de determinadas operações e, permitir leitura não-linear. Deste modo o sentido do discurso não pode ficar isolado, devendo estabelecer relação com a totalidade, visto que os significados se entrecruzam. Conexões que o termo enciclopédia já evoca. Uma exposição alude a outros conhecimentos implícitos e assim sucessivamente, exponencialmente às figuras do cosmos. A concepção de um absoluto, implícita no conceito de enciclopédia, se dirige a um esgotamento entrópico ao mesmo tempo em que faz surgir, por natural exigência ou por milagre, estruturas complexas que compensam a entropia global.
    Todavia, uma enciclopédia visual apresenta problemas distintos de uma enciclopédia fundada na palavra. A enciclopédia visual pelas características de sua matéria deverá se constituir a partir de outros princípios. A seqüência não poderia ser regida pelo código alfabético. Segundo Dias-Pino este tipo de seqüência, de caráter ordinal, provem da palavra e da sonoridade. Na enciclopédia visual ele não poderia, portanto, adotar os mesmos critérios da palavra, não seria possível estabelecer, em relação às imagens, uma sucessão ordinal e definir, por princípio, uma imagem que anteceda ou suceda outra. Dias-Pino propõe para sua enciclopédia o princípio cardinal que indica o número ou quantidade dos elementos constituintes de um conjunto e não uma sucessão hierárquica. Em entrevista, esclarece o poeta:

“Onde começa um quadro, onde termina? Não há como dizer. Num texto, em     contrapartida, há  início e fim. Portanto, como se trata de uma enciclopédia visual, ela tem que seguir um critério cardinal já que o visual é cardinal, ele é emblemático ele é um todo. O dois é um símbolo que indica uma totalidade, ele é emblemático, é um todo. O segundo tem o primeiro antes, mas o dois não quer dizer que tenha o um antes e o três depois. Ele também pode ser a soma de um ou a duplicação do primeiro. Então essa quebra é cardinal. Como na matemática ocidental foi dividido entre ordinal e cardinal, eu também busco neste fundamento a classificar minha enciclopédia.”2
 
    A enciclopédia seria organizada por unidades conceituais engendradas a outras unidades. Um conceito que pode ser expresso numa página, num livro, ou na totalidade da enciclopédia. O grupo ao qual a imagem estará agregada dependerá tanto da arquitetura estabelecida por Dias-Pino, como da escolha daquele que quer ver. Ver uma imagem depende das interações que se estabelece, dos encadeamentos (temporais) de duas coisas diversas. Com as associações (operação de linguagem) por justaposição chega-se a um determinado conceito que a representação isolada da coisa é incapaz de evocar. A imagem diz, não por descrições ou por definições, mas por funções, pela observação da dinâmica das tensões, das transformações. Os elementos, como na natureza, encontram-se interligados, agindo um pelos outros. Realizam, por relações semânticas, uma constelação de significados.
    A Enciclopédia Visual estabeleceria uma disposição orgânica das matérias ao procurar reproduzir a ordem do mundo segundo critérios de analogia, de subordinação etc., tal como compreendidos e idealizados no período de produção. Princípios, aliás, adotados em projetos de enciclopédias anteriores à de D’Alembert e Diderot quando ainda não se adotava a ordem alfabética. Haveria na Enciclopédia Visual um índice de blocos conceituais, aos quais Dias-Pino se refere como naipes, mas não uma medida de clareza e transparência da informação. Seria trabalho do leitor interrogar as imagens e delas construir o seu percurso.

Da inscrição

Dias-Pino define sua poesia como uma luta contra o código alfabético por considerá-lo vinculado ao poder. Ele propõe a substituição do alfabeto por uma linguagem realizada por objetos o que estabelece modos de inscrever e não de escrever. A escrita obedece ao código. A redução racional do sistema alfabético seria adequada ao desenvolvimento de leis cientificas e conceitos. Serve ao rigor da intelecção e à precisa transmissão de informação mas, por outro lado compromete a pregnância sensível dos signos. As imagens palpáveis, visíveis e audíveis arrefecem em prol do rigoroso significado intelectual. Pela razão reduz-se a pluralidade em unidades homogêneas.
    Por outro lado a inscrita não obedece a especificidade do código, possibilita explorar o trânsito inesperado das imagens e, pela dimensão poética, faz ver o imperceptível, ou impõe a vibração oculta (não visível) das imagens. Um olhar que altera e transpõe o mundo. Nas palavras de Dias-Pino “a arte no fundo não existe, o homem a vê. É só isso que existe – o ver do homem.”3
    Dias-Pino que atua não só como poeta, mas também como artista plástico e designer investe no estudo do pensamento visual e gráfico, no que diz respeito diretamente à questão da leitura num universo de imagens e à pessoalidade da ação do leitor sobre o objeto. De certa forma ele pretende implodir a codificação (verbal) para propor permutações dos códigos visuais. Para apresentar uma linguagem gráfica é necessário fazer um livro visual. Um exemplo das possibilidades destas articulações aparece na exposição Sétimo Elogio do A//a (Brasília, 1992) no qual toma o ‘a’ como paradigma de todas as demais letras e propõe uma tipologia próxima do escultórico trabalhando não só com as linhas, mas também com o volume. Ele funde tipografia e símbolos do imaginário de diferentes épocas e sociedades em repertório quase que puramente visual, postulando, concretamente, um tipo de leitura semiótica.
    Outra experiência bastante próxima dos objetivos da Enciclopédia visual é a do livro A marcas e o Logotipo Brasileiro realizado nos anos setenta juntamente com João Felício dos Santos. O livro mostra através de associações complexas de imagens, vários processos de sínteses na construção de inscrições de natureza gráfica. Volta-se, assim, a compreensão de determinados processos de construção da visualidade.  O material aparece organizado como grupos permutáveis e combináveis, permitindo ao leitor abordagens diferentes.
    Por este entendimento, o principio da narrativa se daria pela associação dos objetos inscritos. A leitura se constitui mais a partir de movimentos aleatórios e associações livres do que pelas organizações pré-definidas do espaço. Como se retomasse uma escrita anterior ao homem social ocupado com a organização e delimitação do espaço. A questão não é a identificação da figura a partir de um traço, mas a rede de relações deste traço com todos os outros. Pode-se com isso retomar a imagem do caçador paleolítico cujo percurso escapa a qualquer subordinação ao eixo da palavra, pois se distingue da narrativa verbal, esta centrada na temporalidade do fluxo. Multidimensionais no espaço, suas relações são estabelecidas topograficamente. Organiza-se o espaço pelos vetores de articulação, sem estabelecer fronteiras ou medidas. O caminho não é pré-determinado, nem mesmo as distâncias ou qualquer tipo de encadeamento. É o principio da mobilidade. O território seria definido por movimentos que resultam de interações e mecanismos voláteis. Movimentos que a rigor não eram "agenciados" nem pela caça, nem pelo caçador. No entanto, qualquer apreensão do real corresponde à determinada noção de território. Não há um constitutivo retórico que defina a espacialidade da representação, é o que antecede a linguagem ou a codificação – é o momento em que se interroga os elementos dados a ver e se perscruta suas possíveis relações.

1 CAMPOS, Augusto de. Poesia e/ou pintura. In: CAMPOS, Augusto de. Poesia, antipoesia, antropofagia. p. 72.
2 DIAS-PINO, Wlademir. Depoimento ao autor [abr. 2007]
3 Ibid.