Introdução
A poesia concreta, bastante influenciada pelas artes de linhagem construtiva do início do século passado, destacaria o verbal e o visual como elementos indissociáveis à construção de sentido. Tais preceitos colocariam em questão o livro enquanto veículo legítimo para poesia, impulsionando alguns poetas a utilizarem novos suportes gráficos e evidenciando o meio como parte significante da leitura, em vez de mero suporte sem expressão sígnica. No Brasil, segundo Álvaro de Sá1, seria possível classificar a poesia visual em três vertentes distintas: (1) a construtiva, defendida pelos integrantes do grupo Noigandres, formado inicialmente por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari e, mais tarde também por Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald; (2) a funcional, apresentada por Wlademir Dias-Pino, precursora do livro-poema e do movimento poema/processo e (3) a expressiva, cujo principal representante foi Ferreira Gullar, defendendo uma posição fenomenológica e mais subjetiva que, mais tarde, desembocaria no neoconcretismo.
Bastante crítico em relação à objetividade construtiva, Dias-Pino atua não só como poeta, mas também como artista plástico, tipógrafo e designer. Em todos estes campos, investe em um pensamento gráfico que confronta a leitura ao universo das imagens e suscita a pessoalidade da ação do leitor sobre o poema. Partindo de um fluxo verbal-tipográfico característico da poesia concreta, chega ao gráfico-estatístico segundo uma lógica probabilística ao abrir mão da palavra e substituí-la por outros códigos visuais. Caracteriza-se como o mais cibernético dos poetas concretos, no entanto, seu trabalho ainda hoje é pouco conhecido e estudado devido ao número restrito de exemplares publicados e que se encontram no domínio de coleções particulares, assim como à dificuldade de reprodução gráfica de seus livros-poemas.
Dias-Pino publicou artesanalmente entre as décadas de1940 e 1950 seus primeiros livros na cidade de Cuiabá: A Fome dos Lados (1940), A Máquina Que Ri (1941), Os Corcundas (1954) e A Máquina ou A Coisa em Si (1955). Nesses livros, a desconfiança de quem assiste aos significativos avanços tecnológicos daquele período já se apresenta na temática e no vocabulário dos poemas, revelando um poeta afetado pela presença cada vez mais predominante da máquina: “Que pluma esses dentes / de engrenagem até ao tédio / tamanho mapa, mapa de ferro / ruminando que raiva igual / toda andaime logo de febre / e também aço outras coisas / quase humana, quase hélice.” (DIAS-PINO, A máquina ou a coisa em si, 1955)
Livro-poema
Nos trabalhos seguintes, Dias-Pino lançaria mão das possibilidades físicas do livro ao problematizar processos de recodificação de texto e a própria estrutura do códice, assim como a unidade do verso na poesia tradicional em meio à era eletrônica que, então, se anunciava. Os livros-poemas, termo cunhado para designar suas experiências plásticas/poéticas com este suporte e que tiveram como principais expoentes as obras A Ave (1953-1956) e Solida (1962), constituem sua principal contribuição para a visualidade na poesia brasileira e reforçam a diferenciação teórica entre o concretismo e o neoconcretismo em torno da objetividade nas artes.
Dentre os poetas concretos, Dias-Pino adotaria o livro de modo radical e precursor, propondo uma leitura eletrônica do poema em substituição à leitura mecânica do cérebro humano e a adequação do livro tradicional a outros “aparelhos” de leitura. Fundamenta a distinção entre poema-livro e livro-poema ao afirmar que no poema-livro o suporte estaria subordinado ao poema e, dessa forma, seria cabível utilizar outros meios para sua veiculação. Já o livro-poema não poderia perder sua especificidade de livro, visto que prevê a exploração das possibilidades materiais e (tipo)gráficas do suporte, inaugurando uma interatividade diversa com a obra. Reestrutura-se, assim, a condição linguística do livro diante à profusão de novas mídias, caracterizando-o como meio insubstituível à determinadas produções poéticas.
Segundo Dias-Pino, o verdadeiro artista é aquele que inventa a sua própria maneira de “inscrever”, livre de códigos pré-existentes. Em seus livros-poemas, o alfabeto serve de pré-texto para a criação de outros códigos visuais, relembrando o caráter imagético da escrita, ponto relevante na teoria da poesia concreta. No entanto, ao partir inicialmente de um tema, o poema, ou nesse caso, seu registro, prioriza a exibição de sua mecânica construtiva e a estrutura matemática da sintaxe em detrimento à transmissão de uma determinada mensagem. Esvazia-se o poema de significado para tornar-lo plástico e manipulável pelo leitor. Nesse sentido, a poesia de Dias-Pino encontra pontos de contato com a fenomenologia do espaço essencialmente neoconcretista.
Da experiência como tipógrafo advém a consciência de Dias-Pino sobre a fisicalidade do texto. A compreensão da letra como objeto escultórico, o domínio de diferentes técnicas de impressão e suas características na superfície do papel configuram-se em informação tátil/visual a ser aproveitada no poema. Na tipografia, os “brancos” da página ocupam espaços físicos no componedor e a visualidade se dá pela negativação ou positivação dos relevos dos tipos móveis no papel. Na linotipia, por exemplo, a composição tipográfica é determinada pela perfuração que a máquina executa sobre uma fita de papel, que, posteriormente, distribui os tipos em linhas e blocos de texto na galé para a impressão. Esse sistema incipiente de codificação do texto (digitado) para reconhecimento pela máquina é apropriado pelo poeta em A Ave.
A Ave
A Ave teve uma edição de cerca de trezentos exemplares impressos manualmente por Dias-Pino entre 1953 e 1956. Preserva os índices de sua confecção artesanal e, por isso, um volume não é exatamente igual ao outro. A tiragem reduzida justifica-se na proposta do artista de incentivar o desenvolvimento de novas versões do livro por parte dos leitores. Sua idéia é a de um livro que se auto-explica ao longo do uso, uma espécie de computador de bolso2 que solicita a operação conjunta do leitor na construção semântica do poema. Dessa forma, A Ave, primeira edição a materializar o conceito de livro-poema, marca sua posição intermediária entre o códice e o computador.
Cada página apresenta um verso que interage através da transparência do papel com a página seguinte, composta por um gráfico indicador de leitura que inicialmente recupera o sentido do poema, em movimento de leitura análogo ao vôo de uma ave no céu — “A ave voa dentro de sua cor”. Assim, o livro é organizado em séries que evoluem em um processo de eliminação da palavra até a transparência total das perfurações nas páginas e o desvelamento das várias cores de papel como conteúdo poético. Além disso, os textos são grafados em permutações de caracteres em caixa-alta e caixa-baixa, de forma aparentemente aleatória, remetendo ao caráter estatístico do texto. Esse ruído interfere no tempo de leitura e na experimentação do poema, permitindo que os textos assim combinados entre eles e com os vértices dos gráficos reconquistem novos significados.
Além do tratamento gráfico do texto, a materialidade do suporte é evidenciada em cada detalhe do projeto do livro. O formato retangular é pensado para favorecer a leitura angular dos poemas, conduzida pelos gráficos indicadores de entrada e saída do texto. A encadernação em grampo permite que novas páginas possam ser anexadas posteriormente ao livro, se assim desejado. Os papéis coloridos e de diferentes texturas conferem uma experiência tátil que participa do poema. A Ave se apresenta como uma espécie de programa, cuja contínua metamorfose do código verbal/visual elimina o referente textual e transforma o poema em elemento puramente plástico.
Figura 1: Sequência de textos, gráficos, cores e perfurações de A Ave, 1956.
Solida
No mesmo ano de lançamento de A Ave (1956), Dias-Pino participa da I Exposição Nacional de Arte Concreta em São Paulo, onde apresenta as primeiras versões de Solida em quatro poemas-cartazes. O poema é construído a partir do desdobramento da palavra-título na frase “solidão só lida sol saído da lida do dia”, em operação lógica que remete aos quadrados latinos e suas matrizes permutatórias, evidenciando a matemática da composição poética. Os cartazes são compostos pela recodificação das letras de cada palavra do poema em gráficos de linhas e pontos que tornam visual o processo de construção sintático. A substituição do código alfabético por elementos plásticos revelam o “esqueleto desencarnado de um poema que foi se desfazendo das palavras como se fossem elementos dispensáveis para o fazer poético”3.
Figura 2: Versão de Solida em cartazes, 1956.
Mais tarde, este mesmo arranjo estatístico-poético serviria à elaboração da segunda versão de Solida como livro-poema, lançado em 1962. O livro é apresentado em páginas soltas e não numeradas dentro de uma caixa, proporcionando a experiência de uma narrativa não-linear e a liberdade de escolha dos roteiros de leitura. É composto por um apêndice, que funciona como manual didático de leitura do poema ao expor sua matriz geradora, e por cinco séries de poemas visuais. O apêndice introduz o leitor ao processo de desconstrução do poema que acontece ao longo das séries seguintes, em gesto de protesto contra a rígida estrutura do código alfabético e da poesia tradicional, assim como do modelo linear-discursivo ocidental. As séries são conjuntos de nove páginas em formato quadrado que recodificam cada uma das palavras do poema em elementos gráficos que evoluem do ponto para a linha, para o plano e, por último, para estruturas montáveis através de cortes e vincos nas páginas. O poema, totalmente recodificado em formas geométricas, ganha o espaço em esculturas dobráveis de papel.
Com Solida, Dias-Pino leva adiante os processos de recodificação já presentes em A Ave, assim como a exploração da materialidade do suporte como dado funcional interno ao poema. Da mesma maneira, o livro é impresso manualmente em serigrafia e em pequena tiragem, com o intuito de não conferir ao livro o caráter de obra acabada. A reconstituição do poema original é possível somente através da comparação entre as composições de cada série com o apêndice que contém a chave-léxica do poema. O poema em si, disposto nas séries, não contém nenhum texto, sendo puramente composto por formas que constituem uma linguagem autônoma. Uma vez compreendida a metodologia compositiva, o livro torna-se referencial para a elaboração de novas versões ou de novos poemas pelos leitores. A partir desses jogos de recodificação entre texto e imagem surgem as bases teóricas que fundamentam a dissociação entre poesia e poema e que norteou os postulados do movimento poema/processo, lançado oficialmente em dezembro de 1967 por Dias-Pino juntamente com os poetas Álvaro de Sá, Neide Sá e Moacy Cirne.
Figura 3: Páginas do livro-poema Solida, 1962.
Livro e poema
A Ave e Solida estão sintonizadas com as transformações tecnológicas iniciadas em seu tempo, marcado pelos primórdios da cibernética e pelos novos meios eletrônicos de comunicação, como a televisão. A transfiguração entre códigos textuais e imagéticos explicita a preocupação de Dias-Pino em pensar, já nos anos 1950, uma leitura eletrônica do texto pela máquina, o texto apreendido imediatamente como imagem, antes de suas instâncias semânticas ou fonéticas. Esse pensamento gráfico-relacional em oposição ao pensamento conceitual-discursivo vem se desenvolvendo hoje mais naturalmente no contexto das hipermídias e reconfigurando o modo como as novas gerações acessam e assimilam informações.
Estruturalmente, o livro em seu formato tradicional está associado a uma temporalidade linear intrínseca ao caráter discursivo textual e ao movimento mecânico e seqüencial de folhear as páginas. Está implícita também, desde a invenção da imprensa, a noção de reprodutibilidade e vários exemplares de uma mesma obra. A partir das experimentações com livros de artistas, essas noções são problematizadas em diferentes níveis e muitas vezes desconstruídas. Especialmente nos livros-poemas de Dias-Pino, opera-se a transferência da palavra para outros códigos imagéticos formalmente análogos à pintura concreta e as páginas do livro avançam sobre o espaço em movimento escultórico, fundando uma dimensão espacial que evoca a manipulação e a interpretação (cri)ativas do leitor.
Ao tirar partido da lógica interna do livro, identificando seus limites e regras de funcionamento, os livros-poemas de Dias-Pino alargam as convenções milenares do códice e da poesia tradicional, despontando como pioneiros da categoria de livro de artista no Brasil e no mundo. Nesta revisão teórica do binário livro-poema, ambos os objetos são confrontados como problemas artísticos e solucionados em experiência plástica e nominativa pelo artista. Ampliam-se, com isso, os campos teóricos da arte e da literatura pelo contínuo tangenciamento de seus limites em empreendimento reconciliatório entre forma e conteúdo.
Agradecimentos
Este trabalho foi desenvolvido em pesquisa de Iniciação Científica orientada pelo professor Rogério José Camara junto ao grupo de pesquisa PLACE, vinculado ao Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. O projeto contou, ainda, com o apoio financeiro do programa PIBIC – UFES/Petrobrás e do CNPq.
1 SÁ, Álvaro de. Vanguarda – Processo de Comunicação. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 92.
2 MENDONÇA, Antônio Sérgio; SÁ, Álvaro de. Poesia de Vanguarda no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1983, p. 167.
3 Menezes, Philadelpho. Poética e visualidade: uma trajetória da poesia brasileira contemporânea. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1991.